quinta-feira, 11 de março de 2010

Noite

Ele olhou para ela; ela não olhou para ele! Ele aproximou-se, cauteloso e prudente, no rosto o fácies da credulidade. Ela, sem se afastar, distrai-se no olhar e ajeita o cabelo num gesto pretensamente ocasional.

Sobre o balcão daquele bar, denso e ruidoso, encenam-se cem danças de sedução e de recusa; os homens parecem bonecos articulados movidos pelo desejo e pelo calor do contacto. Elas dir-se-iam combinadas num jogo cruel de negação.

No homem, a natureza impiedosa leva-o a pagar copos sobre copos; neles pontuam centilitros de luxúria recalcada; a mulher aceita e recusa numa complexa diatribe circular.

Atrás do balcão, um homem e uma olhar entrechocam olhares de riso indisfarçável; - sai mais uma...

Eles, um a um recuam nas intenções (o orgulho é um amigo tardio), mas logo um sorriso de ocasião e um gemido reprimido fá-los reocupar posições de combate; nos seus gestos largos e desajeitados tentam resgatar um meneio de aceitação à fêmea distraída. Elas entreolham-se, parecendo competir pela quantidade de atenção prestada; passamos à 2ª fase: - a mulher transita de dominadora passiva a entidade provida de vontade (quantos mais melhor). Eles disputam tudo o que se assemelhe a um espelho ou mero reflector baço e conspurcado; desmultiplicam-se na renovação dos cartões de consumo. No primeiro piso, um qualquer empresário da noite faz contas a uma noite bem "cifrada".

Cá em baixo já não se dança; a pista está escorregadia, as pernas bamboleantes e o espírito entorpecido; aquela loira tem três zombies em seu redor; o homem perde a compustura e já não distingue o copo que pagou para si do copo que pagou para ela, para elas; !hic!

Entrementes,elas descolam-se do balcão e recolhem casacos, malas, négligées; eles tomam gradual consciência da robustez dos cartões e desatam num corropio de visas, multibancos... "eu tenho o cartão da casa", berra um mais confiante, logo demovido pela enormidade do homem-porta, 90kgs de madeira firme e torneada.

Delas, nem sombra. Deles, o desespero... a desesperança... no exterior os copos de plástico somam-se às bolsas de regurgitado que ocupam as imediações do estabelecimento nocturno. O homem-porta ri-se e acena a duas raparigas que entram num táxi; eles ensaiam desasados rituais de iniciação (uma cabeça partida, uma labio lancetado; vagos sorrisos carpidos na amarga natureza de ser macho).

Enquanto isso, algures rodeados pelas gorduras e despojos de uma banca de cachorros um rapaz e uma rapariga entrelaçam-se enlevados e contemplam o rescaldo da noite feita manhã com a estranheza desafiante de uma outra dimensão. Parecem felizes...

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