domingo, 21 de março de 2010

O escritório

Alguns alegarão que o escritório era o mundo de Nuno, o seu pequeno grande cosmos. Fruirão teses, alicerçadas em densas recensões, "O desaparecimento de Nuno F foi motivado por..."
Tinha 43 anos, Nuno, 25 deles inteiramente dedicados àquela casa. Cobiçou durante 12 anos o dito escritório , namorou-o como se de um ideal romântico se tratasse. Entretinha-se, amiúde, com as probabilidades de o tomar como seu; o escritório... tacos de madeira cobrindo o cimento, quinquilharias ornando a fronte da mesa de trabalho encimada por tosca pintura obliquamente pendurada e um relógio de parede, preguiçoso na escrupulosa arte de dar horas, porém orgulhoso do emblema do Benfica que o reveste.
Ficou com ele, findo um período de muita luta e assanhamento, sonegando-o a um qualquer prof. doutor, tísico e incontinente, o pobre diabo.
Tomou-o de assalto num assomo de agressividade e de ambição descontrolada. Numa arrastada simbiose, Nuno e o escritório confundiam-se. As bizarrias sucediam-se, galopantes e inusitadas; trancava-se no escritório com ferrolhos na porta, prescindia de telefones, preferindo gritar as ordens à pobre da secretária que mal podia abeirar-se da mesma. Os despedimentos eram aos magotes, sobrevindo daí processos legais e subsequentes dívidas...

Tudo isto, foi-me soluçado pela sua secretária num buliçoso café da cidade. Por entre um pastel de nata requentado e um café aquoso, o desalento estampado na cara daquela pobre mulher confessando-me o inconfessável, o indecidível, dias antes de me deslocar ao escritório, mandatado por um terceiro a recolher uns impressos amarelos. Estranhamente ou não, Nuno F deixou-me entrar no escritório num fim de tarde invernal.
A chuva implodia, tonitruante, por entre as placas de metal dos beirais. Sentia-o receoso, as palavras saiam-lhe grifadas, como se tagarelando uma ladaínha sem sentido. Permaneci em pé, tal como ele, hirsuto o tempo todo, repartindo o olhar entre as quinquilharias sobre a mesa e a porta; "Sabe, vão-se todos embora. Um dia destes, vão-se todos embora..."; Olhei-o sem pestanejar breves segundos, detendo-me na pintura por cima da sua cabeça; "esteve sempre aí.", disse-me, enquanto estendia dois papéis na minha direcção; "Leve-os... terei todo o gosto em recebê-lo noutra vez..."
Saí atordoado. Só mais tarde me capacitei de não ter proferido um único som, abismado com tudo aquilo, o escritório ribombando ao compasso das gotas de água e uma sombra que não mais alguém veria, mas que todos comentam no fartar vilanagem dos folhetins de uma cidade que nos comprime.




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