terça-feira, 26 de outubro de 2010

espontaneísmos...

No teu sorriso,
enclave de sonhos,
depreendo um sentido no mundo...

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Olá, como estás!?

Tomaste este caminho porque quiseste; disse-te em tempos, quando não eras ainda minha mulher e o tempo se assemelhava a algo imenso e inatingivel. Volvidos tantos anos, amor, repito-te tais palavras num tom outro. Sorris-me então, ligeira, ensaiando um esgar: Tomámo-lo porque o quisemos; rematas, troçista e decidida.
Ainda hoje, ao rasgarmos olhares na penumbra do cio, resistem, perenes, tais palavras, outrora indecisas. Agora, lobrigando o fim que sonhamos protelado, reencantamo-nos no pulsar dos gestos simples e incertos, como incerto e delicado fora o nosso começo...

sábado, 8 de maio de 2010

...

Não há por aqui qualquer sinal de narrativa, mesmo assim...

Vai-se embora Abril
na sua truncada ambição
sobeja ora Maio
faroleiro da defunta paixão

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Visão

Se num só rosto, no deflorar do teu sorriso
pudesse residir toda a beleza do mundo,
renovaria meu grito, entoando-te récitas que ora ensejo.
Porquê, findo um olhar, o mundo implode em lassa amargura...?
De ti, conservo o fragor da memória,
escoando-se, mortal, por te saber longe, miragem... evasão...
Ainda fazes aquelas covinhas no rosto ao sorrir?

segunda-feira, 29 de março de 2010

Itinerâncias

Esta não será propriamente uma narrativa, mas vá lá.. concedam-ma.


Ai se eles soubessem
mas não sabem
que quem não sabe
sabe tanto quanto eles...
mesmo nada sabendo...

domingo, 28 de março de 2010

Delírios... ou não

Sob o pano de loiça um líquido amarelo-esverdeado escorre para o interior da pia. Petrifico, recuo um, dois, três pés. A espaços o líquido corporiza e transmuda-se num possível boneco, dir-se-ia de plástico. Uma monstruosidade cénica toma posse da cozinha.

A pia, num mosaico de cores, remete-se ao papel de palco; o dito boneco ganha forma (é informe e não é nenhum boneco, mas não faz mal).

Tropeço num banco e por pouco não me estampo, costas no chão. Reequilibro-me. O boneco assume uma dimensão quase humana; um pequeno anão desproporcionado.

Tacteio, tremelicoso, o telemóvel que jaz sobre o mesão não despegando, contudo, o olhar daquele espectáculo. Fecho as pálpebras, esfrego os olhos, gorjeio, disco teclas ao acaso no telemóvel.

Um improvável membro assemelhado a um braço apossa-se do meu telemóvel, absorvendo-o no conteúdo de uma qualquer substância; o verde e o amarelo fundem-se numa côr síntese devindo um cinza putrefacto.

Caio por fim ao chão, bato com a cabeça, perco a consciência; uma sonoridade indistinta confisca-me ao breu das entranhas. Sinto-me desfalecer...

A minha boca está húmida, um ou dois dentes latejam. Retinam campaínhas num recanto obscuro do meu cérebro, estendo e encolho as falanges dos pés quando uns fantásticos olhos verdes auspiciam o meu despertar. Uns fantásticos olhos verdes combinando com um top amarelo muito curto que produz em mim uma reputada reacção química.

- Verde e amarelo; penso eu.

Olho a pia e o pano amarelo. O sonasol maçã entornado arremete-se-lhe em seu caminho por sob o pano encavalitado.

Sorrio, beijo-a, arrasto-a p'ró quarto; um fragor de gritinhos entontece-me e excita-me.

Lá dentro, um bicho inarticulado sitia-me os lençóis; ela sucumbe, eu...

domingo, 21 de março de 2010

O escritório

Alguns alegarão que o escritório era o mundo de Nuno, o seu pequeno grande cosmos. Fruirão teses, alicerçadas em densas recensões, "O desaparecimento de Nuno F foi motivado por..."
Tinha 43 anos, Nuno, 25 deles inteiramente dedicados àquela casa. Cobiçou durante 12 anos o dito escritório , namorou-o como se de um ideal romântico se tratasse. Entretinha-se, amiúde, com as probabilidades de o tomar como seu; o escritório... tacos de madeira cobrindo o cimento, quinquilharias ornando a fronte da mesa de trabalho encimada por tosca pintura obliquamente pendurada e um relógio de parede, preguiçoso na escrupulosa arte de dar horas, porém orgulhoso do emblema do Benfica que o reveste.
Ficou com ele, findo um período de muita luta e assanhamento, sonegando-o a um qualquer prof. doutor, tísico e incontinente, o pobre diabo.
Tomou-o de assalto num assomo de agressividade e de ambição descontrolada. Numa arrastada simbiose, Nuno e o escritório confundiam-se. As bizarrias sucediam-se, galopantes e inusitadas; trancava-se no escritório com ferrolhos na porta, prescindia de telefones, preferindo gritar as ordens à pobre da secretária que mal podia abeirar-se da mesma. Os despedimentos eram aos magotes, sobrevindo daí processos legais e subsequentes dívidas...

Tudo isto, foi-me soluçado pela sua secretária num buliçoso café da cidade. Por entre um pastel de nata requentado e um café aquoso, o desalento estampado na cara daquela pobre mulher confessando-me o inconfessável, o indecidível, dias antes de me deslocar ao escritório, mandatado por um terceiro a recolher uns impressos amarelos. Estranhamente ou não, Nuno F deixou-me entrar no escritório num fim de tarde invernal.
A chuva implodia, tonitruante, por entre as placas de metal dos beirais. Sentia-o receoso, as palavras saiam-lhe grifadas, como se tagarelando uma ladaínha sem sentido. Permaneci em pé, tal como ele, hirsuto o tempo todo, repartindo o olhar entre as quinquilharias sobre a mesa e a porta; "Sabe, vão-se todos embora. Um dia destes, vão-se todos embora..."; Olhei-o sem pestanejar breves segundos, detendo-me na pintura por cima da sua cabeça; "esteve sempre aí.", disse-me, enquanto estendia dois papéis na minha direcção; "Leve-os... terei todo o gosto em recebê-lo noutra vez..."
Saí atordoado. Só mais tarde me capacitei de não ter proferido um único som, abismado com tudo aquilo, o escritório ribombando ao compasso das gotas de água e uma sombra que não mais alguém veria, mas que todos comentam no fartar vilanagem dos folhetins de uma cidade que nos comprime.